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From Paulo Ghiraldelli, 3 Years ago, written in Plain Text.
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  1. [Artigo indicado preferencialmente para o público acadêmico]
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  3. A ideia de que nos movemos historicamente por meio de “luta de classes” não é algo original de Marx. Ela estava “no ar” em sua época. A originalidade do Mouro foi acoplá-la a uma teoria da história baseada na contradição entre forças produtivas e relações de produção e a uma visão sobre o “mais valor” produzido pelo homem trabalhador quando no modo de produção capitalista. Qualquer um de nós, hoje, estuda isso em aulas de sociologia, economia, história e filosofia. É um saber dito “básico”, tão básico que, em uma boa escola, pode até estar no âmbito do ensino médio. Mas há algo mais no marxismo e na ideia de “luta de classes”.
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  5. O que está no centro da ideia de “luta de classes” é a visão generosa a respeito de como fazemos nossa história. E talvez Marx tenha, nesse caso, herdado uma tal generosidade do esquema hegeliano da “dialética do senhor e do escravo”.
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  7. Por essa ideia, o que ocorre é que o escravo se deixa acorrentar para não perder a vida, e o senhor o acorrenta, sim, mas não quer dele a vida, nem o sofrimento, quer apenas reconhecimento. Quer ser senhor. Todavia, no momento em que vai pedir reconhecimento, como senhor, ao escravo, já degradou a vida deste e, então, seu reconhecimento de nada lhe serve. De que vale ser senhor aos olhos de um escravo? (O bom é ser senhor diante de outros senhores, de preferência menos poderosos, claro). Essa é a primeira generosidade hegeliana. A outra vem logo a seguir. Trata-se do fato de que, na continuidade dessa “dialética”, o senhor perde seu corpo, e se relaciona com a natureza não mais diretamente, mas através do corpo do escravo. Assim, todo o projeto criativo, e de ganho de identidade por conta disso, é adquirido pelo escravo, e não pelo senhor. Ao fim e ao cabo a dominação do senhor em relação ao escravo dá ao escravo a oportunidade de reconhecimento de si, pois se vê de fato como quem está transformando a natureza e se pondo como sendo o rosto daquele que exerce a força do cérebro, algo propriamente humano. Novamente, aqui, trata-se de uma visão otimista. Uma visão de que entre nós há algo de uma “astúcia da razão”, que faz de um processo generoso, no fundo, a mola propulsora da história.
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  9. Marx pega essa ideia de “dialética” e a faz valer para classes sociais em disputa,  ou em briga por domínio. Sem tirar nem por, ao menos na parte descritiva, trata-se da mesma dialética com nomes trocados. Assim, “luta de classes” em Marx não é guerra, maldade ou aniquilamento do outro. Marx nunca falou que a violência é mãe da história. Essa frase é de Mussolini. Marx, no máximo, disse que a violência poderia ser a parteira da história. É bem diferente.
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  11. A “luta de classes” é, de certo modo, a maneira com uma classe precisa da outra para se fazer dominante, mas também a maneira como perde o contato com a transformação da natureza, que caracteriza o humano, e é assim que a burguesia acaba por depender do proletariado para atuar no mundo. Quando o proletariado percebe que é ele quem transforma a natureza, que é ele que produz “mais valor”, adquire identidade social, atua organizadamente, e pode transformar as leis, os costumes, as tradições, o ensino etc. Isso pode ser chamado de “revolução”. As formas como isso ocorre podem ser com menos ou mais violência, simbólica ou fisica. Aí a conjuntura histórica manda. Mas não é ela que está na teoria. Conjuntura não faz teoria.
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  13. Avalio que é um erro tomar todo esse ideário de Marx e Engels segundo um realismo ingênuo. Ou seja, dizer que “a realidade funciona assim” é alguma coisa que não dá para endossar. Nenhuma teoria, principalmente hoje em dia, tempos em que respiramos ares de relativismo saudável,  deixa de ser antes um modelo a mais que de fato “o real” do mundo. Fazemos jogos de aproximação de modelos. Experimentamos um e outro, casamos modelos. Só o militante político, que necessariamente tem que ser burro e fanático – mesmo na democracia – é que precisa de realismo. É ele quem diz “mas o real …”. É um mal necessário? Talvez. Mas nós, filósofos e acadêmicos, temos o direito (e o dever) de olhar para as narrativas que nossos pares mais gigantescos fizeram, e as tomarmos como modelos, apenas isso. O modelo de Marx é muitas vezes visto exatamente como aquilo que ele não é, como uma fonte de sangue. Ao contrário, a “dialética do senhor e do escravo” é uma visão altamente generosa do processo de dominação. Garanto: há modelos bem perversos.
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  15. Marx e Engels, como Hegel, foram uns fofos. Sem ironia.
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  17. A palavra “luta” deve ser entendida dentro dessa “dialética” que expliquei acima, e que muitas vezes é desconsiderada por conta das leituras que ficam na superfície do conjuntural, no fogo de guerras revolucionárias ou de atenção excessiva aos discursos leninistas a aos massacres estalinistas (que poderiam ocorrer sob outras doutrinas, ou sob o Czar). Ora, se fizermos assim, se tirarmos ao conteúdo filosófico de seu nicho, ou seja, se esvaziarmos de filosofia as doutrinas filosóficas, vamos deixar por conta de exércitos com a Cruz serem os porta vozes da mensagem de amor inerente ao cristianismo. Podemos transformar tudo em ação de ódio. Nem sempre quem faz assim sabe ler filosofia. Aliás, achar maldade onde há bondade é uma inversão de nietzschinismo mal aprendido, tosco, de gente que leu Cioran errado etc.
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  19. A “dialética do senhor e do escravo” é uma dialética de senhor e escravo, não de anjos. Mas é uma descrição de processos espirituais e materiais de dominação que contém uma generosidade intrínseca, talvez até ingênua. Daí eu brincar: Marx e Engels foram uns fofos. Há enorme dose de verdade nessa brincadeira.
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  21. Paulo Ghiraldelli Jr, 60, filósofo.